De HUMBERTO MARIOTTI (Professor e Coordenador do Centro de Desenvolvimento de Lideranças da Business School São Paulo)
Humberto Mariotti apresentou nas 3as. Conferências Internacionais de Epistemologia e Filosofia, no Instituto Piaget, Campus Acadêmico de Viseu, Portugal, nos idos de 2002, um seminário sobre OS CINCO SABERES DO PENSAMENTO COMPLEXO (Pontos de encontro entre as obras de Edgar Morin, Fernando Pessoa e outros escritores). Texto de relevância significativa para os tempos de hoje, do qual extraio um saber específico que merece a reflexão cuidadosa de todos nós, para uma mudança possível de modelo mental. O SABER CONVERSAR. O texto completo do Seminário, cuja leitura é imprescindível, a meu ver, foi extraído do site: http://www.comitepaz.org.br.
Saber conversar
“O que para nós é claro, pode ser incompreensível para o outro. Como observam Joseph O’Connor e Ian McDermott, em princípio tendemos a julgar a nós mesmos pelas nossas intenções e não pelo resultado de nossos atos. Esse pressuposto em muitos casos nos leva a ser auto-tolerantes: se algo dá errado, ou se o resultado de nossas atitudes prejudica alguém, sempre poderemos dizer que não era essa a nossa intenção. Por outro lado, costumamos julgar o outro não pelas suas intenções (que nem sempre podemos perceber), mas por seu comportamento. Se algo não dá certo, ou se alguém é prejudicado, torna-se bem mais difícil sermos tolerantes com ele.
Mas ocorre que o tipo de alteridade ao qual estamos culturalmente determinados — gerador de mil cautelas, medos e desconfianças — não nos põe à vontade para conversar de modo aberto sobre as nossas intenções. Ao contrário, muitas vezes tendemos a escondê-las ao máximo. Se avalio o outro apenas pelo seu comportamento (e não pelo seu comportamento somado às suas intenções), é claro que ele me julgará do mesmo modo.
Esse é mais um dos resultados da limitação de nossas percepções e entendimentos pelo raciocínio de causalidade simples, que reforça a desconfiança e a constante busca de “provas”, aumenta o nível de cobranças e dificulta a tolerância. Somos inclinados a reagir a comportamentos, e não a interagir com intenções e condutas.
Modificar o nosso modelo de conversação constitui, talvez, a melhor forma de lidar com essa dificuldade. Sabemos que nosso modo de conversar é determinado por um alto nível de institucionalização. Em nossa cultura, não são muito freqüentes as oportunidades de falar com liberdade e sinceridade. Essa situação poderá mudar de modo significativo, se e quando conseguirmos transformar nossas conversas em trocas de intenções, em vez de continuar a fazer delas meios de ocultá-las. É preciso construir uma ética do dialogar, cujo ponto de partida pode ser a aprendizagem de como receber feedback e, em função disso, mudar de modelo mental.
É claro que essa atitude não significa que devemos fazer tudo o que o outro quer. Nosso principal empenho será fazê-lo dar-se conta de que nosso propósito é entender que seu comportamento provavelmente reflete as suas intenções, e que esperamos que ele faça o mesmo a nosso respeito.
Precisamos estar bem conscientes, porém, de que nossa cultura potencializa as posições reativas e dificulta as criativas, o que não quer dizer que devamos renunciar a estas. A chave para compreender esse sistema é tentar chegar às intenções do outro.
Tudo bem examinado, deduz-se que saber conversar é algo que só se aprende quando se é livre. Entre as muitas maneiras de definir o que significa ser livre chama atenção a de Viktor Frankl, que definiu liberdade como o intervalo entre o estímulo e a resposta, isto é, o espaço entre as questões que o mundo nos propõe e as respostas que lhe damos. Frankl sabia o que dizia. As bases de seu pensamento — que deram origem a uma corrente de psicoterapia existencial, a logoterapia — começaram na década de 20, mas foram consolidadas em sua experiência como prisioneiro de campos de concentração nazistas.
O psicoterapeuta Rollo May define liberdade do mesmo modo: como a possibilidade que uma pessoa tem de estabelecer uma pausa entre o estímulo e a resposta e depois orientar-se para uma determinada atitude, escolhida entre várias outras. É esse intervalo, esse pequeno interstício, que convida as pessoas a serem livres. E é dele que temos tanto medo: sempre que chamados a visitá-lo, refugiamo-nos no já visto, no conhecido. Essa é a principal forma de manter conversações que costumam louvar as virtudes do novo e queixar-se da repetitividade da vida, mas que são, elas próprias, repetitivas em sua insistência de opor-se a novas maneiras de ver o mundo.
Quando digo que precisamos reaprender a conversar, refiro-me a essa circunstância. Reaprender a conversar significa reaprender a utilizar nossos espaços de criação. Mas o medo de ser livres faz com que fujamos deles. Essa fuga se faz com mais freqüência por meio de nosso hábito de fazer perguntas padronizadas, as quais por sua vez suscitam respostas estereotipadas. Dizemos o que os outros querem ouvir para que eles nos respondam o que queremos ouvir — e assim nada se aprende e nada se ensina.
Se cada um de nós percebe o mundo segundo a sua própria estrutura, saber conversar significa antes de mais nada saber perguntar. Expliquemos. Em nossa cultura, muitas vezes o diálogo se torna uma competição, na qual se decidirá quem fala melhor, quem argumenta com mais brilhantismo e assim por diante. Em geral, julgamos que uma questão bem formulada é a que põe o outro em dificuldades. Sentimo-nos vitoriosos quando conseguimos embaraçar o nosso interlocutor. Propor-lhe perguntas difíceis, acuá-lo, significa para nós um triunfo. Com muita freqüência, usamos as perguntas não para conversar, para aprender algo, mas para “vencer” um debate.
O modo como o interlocutor entende o nosso questionamento depende de sua estrutura, não do que perguntamos. Saber perguntar é fazer perguntas que produzam alterações no questionado, isto é, que o levem a aprender algo, a modificar-se e depois partilhar conosco o que aprendeu. Nesse sentido, saber questionar, antes de ser uma pretensão a receber algo de quem se pergunta, equivale a dar-lhe uma oportunidade de transformar a sua estrutura, isto é, de aprender. Trata-se, no fim das contas, de um processo maiêutico.
Ensinar é propor questões mobilizadoras. Estas produzem em quem as formula uma expectativa respeitosa diante da resposta, e é por isso que saber questionar conduz a saber ouvir. Não pode haver indagações adequadas sem a conseqüente preparação para receber o retorno.
Saber questionar equivale a desencadear um processo de co-educação. Krishnamurti costumava dizer que o verdadeiro problema da educação são os educadores. Marx preocupava-se em saber quem os educaria. Se partirmos do princípio de que o verdadeiro papel dos educadores é formular perguntas adequadas, segue-se que quem os educa são os educandos, ao dar-lhes as respostas.
Nós somos o mundo. Quando perguntamos algo a alguém, é o próprio mundo que se abre para essa pessoa, não para desafiá-la ou constrangê-la, mas para proporcionar-lhe uma oportunidade de modificar-se e, a partir daí, modificá-lo. Do mesmo modo, ao recebermos a resposta é do mundo que ela vem. Nesse sentido, conversar com o outro significa que o mundo conversa consigo próprio por nosso intermédio. É por isso que conversar significa estar-com, encontrar-se, religar-se, descondicionar-se, libertar-se. Eis a essência da autoprodução.
George Johnson assinala que quando lemos algo, ou quando conversamos com alguém, essa experiência produz modificações físicas em nosso cérebro (isto é, mudanças de estrutura). Tais modificações se manifestam pela formação de novos circuitos neuronais e mobilizações de memória, que por sua vez levam a dinâmicas diferenciadas. Logo, a multiplicação dessas conexões e sua organização em forma de rede constituem o ponto central de qualquer processo importante de transformação. Muitas vezes, absorvidos com a possibilidade do emprego de métodos e técnicas mais elaborados, esquecemo-nos de que a fluidez e a naturalidade das conversações compõem o que há de mais simples e importante para essa finalidade.
Se o que define uma cultura é o conteúdo das redes de conversação que a percorrem e compõem, saber conversar é saber construir um universo cultural. Conversar é aprender, mesmo quando nosso interlocutor não é capaz de nos dar a resposta que consideramos “certa”. Dizer ao outro o que ele quer ouvir — e fazê-lo retrucar na mesma medida — não é conversar, é monologar.
A conversação constitui uma oportunidade para que as emoções de cada interlocutor se reorganizem. Como diz Maturana, ela promove o entrelaçamento do emocional com o racional. Daí a importância dos pequenos grupos. Eles representam a ampliação dos espaços de liberdade individual e, em conseqüência, das possibilidades de aprender a conversar.
A diversidade de opiniões que caracteriza os grupos assim formados faz com que esses espaços de criação jamais se fechem nem sejam preenchidos. Eles precisam ficar sempre abertos, porque constituem uma região de troca e enriquecimento. Educar-se é adquirir a capacidade de identificar e ampliar ainda mais os espaços de conversação e, sobretudo, mantê-los sempre permeáveis.
A linguagem não acontece nos interlocutores e sim no “entre”, no espaço comum criado entre eles e por eles. Ocorre no intervalo de liberdade há pouco mencionado. Além disso, as modificações estruturais produzidas pela linguagem não se limitam ao campo verbal nem ao momento em que ocorrem as conversas.
Já sabemos, com Maturana, que a linguagem promove modificações estruturais porque coordena (organiza, sintetiza) os nossos comportamentos e, ao relatá-los, contribui para que eles se modifiquem. As interações (os encontros) deflagram mudanças nos sistemas vivos: são as coordenações. A linguagem coordena e relata essas coordenações. Ela é, portanto, a coordenação das coordenações.
Muitas das dimensões de nossas interações são inconscientes, mas nem por isso deixam de participar dessas relações. Se é certo que boa parte da nossa conduta é determinada pelo inconsciente, isso não quer dizer que nos devamos entregar por completo aos ditames dessa parte de nossa psique. Podemos lidar com elas de vários modos. O principal consiste em fazer com que os conteúdos inconscientes venham à tona, para que possamos tentar examiná-los e, dentro do possível, fazer escolhas. Para a promoção dessa emergência a conversação é indispensável. Por isso é que afirmo que saber conversar é saber ser livre”.