O elo solidário

A história de Mamoudou Gassama, o malinês que salvou uma criança de quatro anos pendurada na sacada de um apartamento em Paris e se tornou herói conhecido como “o Homem Aranha africano,” foi manchete de jornais em todo o mundo e rendeu incontáveis artigos e matérias – inclusive este que lhe envio agora Claro, seu ato provocou fartas considerações e ressoa com sete badaladas no peito de cada um de nós.

Como bem indagou a jornalista Ruth de Aquino, em artigo n’O Globo, de 02/06/2018: “Bastaram 35 segundos. Pouco mais de meio minuto. O que se faz nessa fração da vida para mudar todo o seu rumo?” Decide-se! Decisão rápida e determinada, tomada com base em valores profundos, aqueles que guiam nossas ações imediatas, foi fundamental para o sucesso da sua empreitada. Aí mora a primeira lição. 

Os valores da decisão foram claros, como revelou o próprio Gassama: “Na África temos uma outra maneira de fazer as coisas… Nós, quando vemos alguém em perigo sempre ajudamos”. Valores consistentes, ancorados em princípios éticos, impulsionam ações decididas e decisivas.

Sim, podemos afirmar que o Universo conspirou, como dizem: a
pessoa certa, com as habilidades certas, na hora certa, no local exato. Mas há um detalhe pungente de Gassama quando declara: “Não somos como os europeus, que numa situação dessas dizem: “não é o meu trabalho, mas dos bombeiros”. Essa fala ecoa agora densamente pelas ruas das cidades, pelos corredores das Organizações, pelas ondas dos tweets e posts virtuais.

É óbvio que a delimitação clara de papéis é fundamental. Mas, concordo com Gassama. Na nossa prática ocidental, colocamos uma redoma a nossa volta, definimos funções e papéis como se fossem regras irrevogáveis, e passivamente justificamos a manutenção da nossa zona de conforto. Infelizmente, parece que estamos cada vez mais anestesiados diante do que acontece “embaixo do nosso nariz”.

A afirmação do herói de Mali reverbera a nossa desídia para com o outro em situações cotidianas, até no trabalho. Não queremos saber quem esse outro realmente é, pois ficaria mais difícil ser indiferente. O time, a parceria, alardeados aos quatro ventos hoje em dia, vêm como procedimentos escritos, que na hora H, são colocados na gaveta em prol do “meu” do prazo, do “meu” conforto, do medo, da hierarquia, do “meu” resultado, do mercado, etc.

A palavra solidariedade tem origem no latim solidus, da geometria que se refere aos corpos de três dimensões. A expressão in solidum, em latim, significa por inteiro. No francês judicial do século XV, solidário referia-se a uma situação na qual cada um responderia por todos. No século XVIII, a palavra “solidário” foi usada pela primeira vez com a acepção atual de “aderido a uma causa”.
Ser solidário é um valor que está esgarçado em nosso tecido social e organizacional. O exercício de ser solidário implica em se incluir e incluir o outro no contexto, realizando trocas que importam e interessam mutuamente.

O ato de Mamoudou Gassama, guardadas as proporções de perigo e morte daquela circunstância, me despertou algumas reflexões. Vem agora a segunda lição: a solidariedade é valorizada, aplaudida, mas pouco praticada; a decisão rápida e a ação determinada são impulsionadas por desejos intensos e valores consistentes, mas estamos cada vez mais apáticos.

Sabemos da importância de termos propósitos comuns, de promover a convergência de causas individuais e coletivas, de ajudar o outro, aprender com o outro, ensinar o outro, criar com o outro… Então, me pergunto, onde foi que perdemos o elo solidário? Onde enfiamos os valores que constroem relações sólidas e impulsionam ações decisivas? Aqueles 35 segundos que transformaram Gassama em herói planetário, nos trouxe lições e reflexões que precisamos aplicar (ou não) no nosso dia a dia.

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